Redes:
Um novo exercício de cidadania
Teresa Moreira
Rede
de pesca, rede de emissoras de TV, rede de educadores e educadoras. O que têm
em comum coisas aparentemente tão diferentes? Através da palavra rede, comum
a todas elas, e que observamos surgir cada vez mais em reuniões de movimentos
sociais, em livros sobre sistemas organizacionais de grandes empresas, adentramos
um universo de formas de organização que a cada dia ganha mais força.
Essa palavra - rede - transformou-se,
nas últimas duas décadas, em paradigma de organização "alternativa".
Baseando-se no conceito desenvolvido na rede de pesca, cuja malha é resistente
e composta de nós interligados por fios aparentemente frágeis, o sistema operacional
em forma de rede sugere descentralização, resistência e amplitude.
Nas últimas décadas essa forma de
organização tem inspirado tanto a formação de empresas transnacionais como a
de movimentos sociais empenhados em se confrontar com elas. Por isso a noção
de rede adquire uma multiplicidade de formas, que uma estrutura tão simples
acaba se transformando em algo difícil de compreender.
Na verdade, as redes são fenômenos
tão antigos e espontâneos quanto as relações humanas. Se pensamos no nosso círculo
mais imediato de amizades, veremos como funciona uma rede. Em geral, as pessoas
com quem nos relacionamos possuem entre si algum tipo de relação e, por sua
vez, se relacionam com outras pessoas que, direta ou indiretamente, afetam a
nossa vida.
Numa representação gráfica da nossa
rede pessoal de relações as pessoas seriam os nós e as relações que estabelecem,
as linhas. Quanto maior for o grau de entrelaçamento dessa rede, maior será
o nível de envolvimento entre as pessoas. E, portanto, maior a coesão do grupo.
As redes integram, de maneira informal,
vizinhos, comunidades e povos inteiros. Existem culturas tradicionais no Norte
da África e nos países árabes que se baseiam há muitos milênios no poder das
redes para manter sua integridade. Baseadas em ancestrais comuns, essas tribos
envolvem-se freqüentemente em guerras, mas são capazes de manter uma enorme
coesão quando diante de um inimigo externo.
Essa forma organizacional tornou-se
opção de empresas, organizações sociais e governos do mundo inteiro, diante
de um quadro de crise internacional em que as burocracias tradicionais se mostram
incapazes de dar respostas rápidas e certeiras aos inúmeros desafios que enfrentam.
Como funcionam as redes?
As redes são sempre lembradas como
estruturas orgânicas. Baseiam-se em figuras da natureza. A teia de aranha e
a minhoca exemplificam esse tipo de estruturação. É impressionante a resistência
da teia de aranha, apesar de ser toda construída a partir de um fio tão vulnerável.
A minhoca, por outro lado, é capaz de reconstituir-se mesmo depois de retalhada.
Essas duas características: aumento
da resistência a partir de entrelaçamentos e capacidade de manutenção do todo,
mesmo quando uma ou mais partes sofrem danos, explicam a emergência das redes
em todos os níveis.
As grandes empresas, com filiais
em inúmeros países conhecem a necessidade do entrelaçamento, principalmente
em relação à manutenção dos padrões de qualidade da troca de know-how, etc.
Mas conhecem também a necessidade de autonomia para que o todo não sucumba com
as crises locais.
O mesmo acontece com as redes dos
movimentos sociais. Cada um deles é composto por inúmeras organizações que têm
suas lideranças, metas, objetivos e formas ação específicas. Quanto maior for
o entrelaçamento entre as várias organizações que compõem essa rede, maiores
serão as chances de coesão em torno de objetivos definidos pelo conjunto. E
mesmo que a rede sofra derrotas ou perca algumas organizações que a compõem
não será facilmente destruída.
Existem muitos modelos de redes,
como existem inúmeras formas da aranha construir sua teia, e inúmeras maneiras
de se fazer uma rede de pesca. Há redes com um único elemento articulador e
vários outros que gravitam em torno dele. Há outras em que todos os elementos
se relacionam entre si. Há redes intermediárias em várias graduações entre esses
dois extremos. Mas todas elas mantêm uma série de características que são listadas
a seguir:
- Quanto à estrutura, as redes são
policêntricas, mais horizontais do que as burocracias, no sentido em que
há menos instâncias de poder entre base e liderança.
- Quanto às relações, as redes estimulam
mais o relacionamento entre iguais do que entre subordinados e superiores.
As pessoas tendem a se vincular segundo critérios de respeito mútuo, solidariedade
e reconhecimento das habilidade individuais e/ou profissionais.
- Quanto às habilidades individuais,
as redes aproveitam-nas melhor do que as burocracias. Estimulam a participação,
a criatividade e a emergência de lideranças.
- Quanto à liderança, ela tende a
ser mais móvel e descentralizada. Emerge mais pelo saber específico e atuação
pertinente em situações em que um líder se faça necessário, dissolvendo-se
em seguida e dando chances à emergência de novas lideranças. As redes são
essencialmente policéfalas.
- Quanto ao estilo, as redes são menos
formais e mais sociáveis. Pela sua flexibilidade, propiciam a tomada de
decisões e políticas mais maleáveis. Permitem a coexistência da diversidade
de culturas e formas de pensar. Isto, aliás, é bastante enfatizado nesse
tipo de organização, como forma de enriquecimento.
- Quanto à identidade, as redes operam
baseadas no poder de uma idéia unificadora e de princípios básicos compartilhados
por todos. Esses são os únicos pontos que estão acima de debates e discussões
internas. Tudo o mais é passível de discussão.
- Quanto à convivência em meio à diversidade,
as redes são formas organizacionais que consideram o faccionismo benéfico.
Isso evita a dominância de um único segmento. Quando a idéia unificadora
da rede torna-se clara para todos, os grupos que se antagonizam em relação
a uma política específica tendem a tornar-se aliados em relação a outra.
As redes no movimento de mulheres
Há uma grande coincidência entre
a estrutura das redes e as novas relações preconizadas pelo movimento de mulheres.
Ausência de centralismo, flexibilidade, valorização pessoal, solidariedade,
são valores com os quais as mulheres se identificam completamente. Não é de
admirar, portanto, que grande parte das organizações formadas por elas tenham
o caráter de redes.
Além disso, o movimento de mulheres
abriga uma enorme diversidade. Ele perpassa toda a sociedade, englobando grupos
de mulheres de diferentes etnias, de várias classes sociais, das mais diversas
faixas etárias, ligadas às mais diversas formas de organização social.
Apesar de desenvolver atividades
específicas e de lutar pela manutenção da sua autonomia, o movimento de mulheres
também está imerso na sociedade e, portanto, integra-se nas lutas travadas por
outros movimento sociais. Tudo isso faz com que organizações em forma de rede
comportem toda essa diversidade de modo que o todo não perca a identidade e
as partes não se sintam asfixiadas em sua expressão.
Só para se ter uma idéia da importância
desse casamento entre as redes e o movimento de mulheres, o organização do Planeta
Fêmea durante a Eco’92 baseou-se inteiramente nas redes feministas espalhadas
pelo mundo. A estrutura do Planeta foi montada para dar voz às várias redes
de continentes e países. Cada uma delas encarregou-se de preparar um tema específico
desenvolvido a cada dia.
No mundo
As redes estruturam-se em vários
níveis. Em alguns casos nem têm o nome de rede, mas funcionam dessa maneira
na prática. No plano internacional, algumas dessas organizações, pela sua importância,
não poderiam deixar de ser mencionadas. Eis algumas delas:
Rede Mundial de Mulheres pelos
Direitos Reprodutivos. As articulações em torno dessa rede iniciaram-se
há cerca de 15 anos como forma de colocar à disposição das mulheres informações
sobre tecnologias reprodutivas.
Dawn - Mulheres por um Desenvolvimento
Alternativo. Essa rede internacional de pesquisadoras surgiu em 1985, por
ocasião da década da mulher.
IOCU - Rede Internacional de
Consumidores. Embora seja uma rede mista, a grande maioria de participantes
são mulheres.
Isis Internacional. Uma
mega-rede internacional. Possui mais de 50 mil contatos em 150 países. Trabalha
no nível da informação, tanto capacitando mulheres na produção e manejo da informação,
quanto instrumentalizando-as em formas de ação cotidianas. Além de uma revista
semestral produzida conjuntamente por um ou mais grupos de mulheres do 3º mundo,
edita um boletim trimestral. É uma rede que cria novas redes.
Red Entre Mujeres. Esta
rede surgiu como espaço de diálogo entre mulheres dos países do Sul com suas
parceiras do Norte, inicialmente através da agência financiadora Novib. Com
o tempo passou a englobar contatos entre mulheres no eixo Sul/Sul e se abriu
para outras grandes agências de cooperação da Holanda.
Womenet, Rede da Mídia de Mulheres.
É uma rede de redes, composta por inúmeras redes de informações locais de
mulheres espalhadas pelo mundo. Surgiu de um encontro promovido por Dawn, para
identificar métodos efetivos de pesquisa analítica que desafiem os modelos de
desenvolvimento vigentes. Tem uma enorme capacidade de repassar informações
para as ONGs de mulheres.
Na América Latina e Caribe
Na América Latina e Caribe existem
também várias instâncias que podem nem ter o nome formal, mas exercem o papel
de redes, como o Conselho Latino-americano dos Direitos da Mulher - CLADEM.
Entre as redes mais expressivas estão a Rede de Comunicação Alternativa da Mulher
- FEMPRESS-ILET, e a MUDAR, que é a expressão latina da DAWN. Destacamos algumas:
REPEM - Rede de Educação Popular
entre Mulheres. Originou-se do programa de mulheres do Conselho de Educação
de Adultos da América Latina - CEAAL, autonomizando-se em 1988, mas mantendo
sempre um estatuto de relações com o CEAAL. Tem como idéia geradora a educação
popular entre mulheres, através de três eixos principais: mulher e economia
popular, educação não discriminadora e solidariedade.
Rede de Organizações não-governamentais
de Trinidad-Tobago para o Avanço das Mulheres. Criada em 1985, reúne representantes
de 77 organizações de mulheres desse país. Surgiu para advogar a causa feminista
e dar suporte às organizações de mulheres, baseando-se nos princípios da Convenção
das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra
a Mulher.
Rede Latino-americana e do Caribe
de Saúde das Mulheres. Envolve cerca de 2200 organizações que se dedicam
à saúde da mulher. Surgiu durante um encontro sobre saúde promovido na Colômbia,
em 1984, por Isis Internacional. É uma das redes mais atuantes na área de saúde,
referência obrigatória para quem trabalha esse tema.
Rede Latino-americana de Promoção
do Empresariado Feminino. Surgiu da necessidade de se criar uma forma organizada
de comunicação entre as mulheres do continente. Foi criada em Turim, na Itália,
durante um encontro auspiciado pela OIT - Organização Internacional do Trabalho.
Pretende estabelecer linhas de ação que favoreçam o acesso da mulher ao mundo
do trabalho e da empresa em igualdade de oportunidades.
No Brasil
No Brasil, as redes desempenham
um papel de crescente importância como instâncias de organização das mulheres.
Entre elas destacam-se a Rede de Saúde e Direitos Reprodutivos, a Rede contra
a Violência Sexual e Doméstica, a Redeh - Rede de Defesa da Espécie Humana e
a Rede Mulher de Educação.
Entre as redes nacionais, a Redeh
simboliza um pouco a maneira informal com que as redes são criadas. Ela surgiu
em 1987 ante a necessidade de sistematizar um trabalho informal que algumas
mulheres realizavam na área da procriação e direitos reprodutivos. A partir
do Brasil, a Redeh vincula-se com a Finrrage, uma rede internacional que surgiu
na Alemanha e se ocupa dos avanços da biotecnologia e da engenharia genética
na apropriação do corpo feminino. Trabalha basicamente na área da informação.
Conta com um centro especializado, publica boletins, cadernos, folhetos e coletâneas
de artigos sobre a temática com que trabalha. Realiza seminários e oficinas
e atua na mídia impressa, radiofônica e televisiva.
Rede Mulher, uma rede de educação
popular feminista
Em 1981, em meio a uma forte demanda
de assessoria aos grupos populares que se formavam a partir das experiências
com clubes de mães em bairros da periferia de São Paulo, surgiu a idéia de se
articular um trabalho em forma de rede de apoio. Após dois anos de intensos
contatos com esses grupos, a Rede Mulher passou a existir como personalidade
jurídica e a definir seu perfil como uma rede feminista de educação popular.
Com essa proposta, assessorou a
formação de vários grupos de mulheres e impulsionou o processo de autonomização
de grupos de mulheres ligados à Igreja, sindicatos, partidos políticos, etc.
Durante
os trabalhos da Constituinte, em 1986, a Rede Mulher foi o nó articulador de
cerca de 750 grupos de mulheres de todo o Brasil, que se organizaram em 14 comissões
de trabalho autônomas que propuseram a "Emenda Popular sobre os Direitos
da Mulher" para a nova constituição.
Questões como a administração de
verbas, de pessoal e a necessidade de um espaço físico para suas atividades,
desencadearam uma centralização das atividades da Rede Mulher em sua sede em
São Paulo. Isso gerou questionamentos quanto à sua identidade. Para trabalhar
essas questões iniciou-se em 1989 um processo de Desenvolvimento Organizacional
que culminaria em 1994 com a adoção de um novo estatuto e a definição da Rede
Mulher como uma rede de serviços, constituída por um Tear - uma ONG que cumpre
o papel de um secretariado executivo - e uma Trama - a educação popular feminista.
Hoje (1997) conta com uma estrutura
que compreende uma sede, 9 pontos focais em 8 estados brasileiros e no Distrito
Federal, um quadro de sócias-educadoras e filiadas e filiados, em que se incluem
pessoas e entidades em todo o território nacional.
Bibliografia Sumária
Antherion, Pauline: Manual para
sistemas y servicios de información, Unesco.
Boletín Diálogo Mujer, nº 8, jan
1993, Colômbia.
Hine, Virginia. As redes numa sociedade
global, in The Futurist, jun, 1984
Lipnack, Jessica e Stamps, Jefffrey.
Networks: redes de conexões. Ed. Aquariana. S. Paulo, 1992
Meinnis, Noel. O sistema de redes:
um meio de controle de nosso mundo em transformação, in The Futurist, jun 1984.
Materiais promocionais das redes
mencionadas.
FONTE:http://www.redemulher.org.br/forum2.htm